The CRPG Book Project e a História dos RPGs de Computador
quinta-feira, julho 23, 2015 José Guilherme Wasner Machado 13 Comentários Categoria: eventos , rpg , rpg old school
Quem lê este blog sabe o quanto me aborrece a alienação de grande parte da comunidade gamer sobre a rica tradição dos RPGs de computador. Em especial, grassa a ignorância sobre os principais títulos dos anos 80 e 90, responsáveis por criar e aperfeiçoar muitos dos conceitos que hoje dominam o gênero. Se você curte em seu Xbox ou Playstation franquias como Fallout, Dragon Age, Skyrim, Deus Ex, entre muitos outros, está, em última anáĺise, colhendo os frutos de uma longa e complexa cadeia evolutiva que teve início lá nos primórdios da computação pessoal. E até mais além, entrando no domínio dos jurássicos mainframes. Infelizmente, o desconhecimento sobre esse passado fascinante é algo difícil de se reverter, pois há escassa literatura de qualidade sobre o assunto. Numa tentativa de mudar esta situação, eis que surge uma ótima iniciativa: o CRPG Book Project. O objetivo deste projeto é desenvolver um livro gratuito, de uma forma totalmente colaborativa, para difundir e preservar a memória e a cultura dos RPGs de computador. Só posso aplaudir de pé.
Obs: as imagens que ilustram este artigo foram capturadas a partir do próprio livro.
Se mesmo nos EUA os CRPGs antigos são menos conhecidos, no nosso país então nem se fala. Por conta da malfadada reserva de mercado de informática dos anos 80, os computadores pessoais tinham um custo astronômico no Brasil, e essa situação perdurou ainda por boa parte dos anos 90. Os equipamentos com recursos gráficos mais sofisticados eram particularmente caros. Sem falar que muitos deles sequer chegaram por aqui, mesmo na forma de clones. Por conta disso, os computadores pessoais nunca tiveram grande penetração no Brasil, no que diz respeito a jogos eletrônicos. Portanto, não é surpreendente que, dada sua predominância nos consoles de então, os JRPGs tenham se tornado bem mais populares. Se tornando inclusive o sinônimo do gênero em terras tupiniquins. Já os RPGs de computador passaram virtualmente em branco no nosso país, incluindo aí franquias consagradas, como Ultima ou Wizardry. "RPG", para o jogador brasileiro, era Final Fantasy ou assemelhados, e ponto final. Essa realidade só vêm mudando na última década, com o domínio crescente de RPGs ocidentais nos consoles.
Por conta deste histórico francamente desfavorável, é surpreendente que a iniciativa de um livro sobre CRPGs seja justamente de um brasileiro, o Felipe Pepe. O Felipe é ativo colaborador do RPG Codex, um dos principais sites dedicados ao gênero. O Felipe teve a idéia de montar o livro após criar, para o RPG Codex, uma enquete visando determinar os melhores títulos da história (vide entrevista abaixo). Ele também escreve com alguma regularidade para o Gamasutra, um dos melhores endereços sobre a indústria de games. São artigos muito interessantes e que também giram sobre a história dos games e da necessidade de preservá-la para as futuras gerações. Confiram, vale muito a pena.
O CRPG Book
O CRPG Book, por enquanto, está em formato apenas digital. Pode ser que ao final seja lançada também uma edição em papel, por um preço. Se isso acontecer, eu certamente comprarei um exemplar. O livro é desenvolvido de forma colaborativa e voluntária, por meio de crowdfunding e sob a licença Creative Commons Attribution - NonCommercial 4.0 International. Se você quiser conferir como está ficando o trabalho, já foram liberadas duas versões de preview. A primeira contou com cem resenhas, enquanto a segunda, publicada há pouco tempo, já está nas duzentas. O objetivo final é que o livro compile mais de 300 jogos, em cerca de 480 páginas. O Felipe volta e meia libera atualizações por meio de sua conta no twitter, aĺém da própria página do projeto. Vale acompanhar.
Eu dei uma boa lida no primeiro preview. Gostei particularmente dos artigos especiais. As resenhas também estão muito boas, e mostram a paixão dos autores pelos seus RPGs favoritos. Gostaria apenas que algumas delas fossem mais detalhadas, especialmente sob o contexto histórico. Mas isso é uma questão de preferência pessoal. Como o leitor frequente deste blog já deve ter percebido, gosto de textos extensos e bem detalhistas. :) Minha avaliação geral do trabalho é muito positiva e não vejo a hora de botar as mãos na edição final desta belezinha.
Entrevista com Felipe Pepe, autor do projeto
Enviei algumas perguntas pessoais e/ou sobre o projeto ao Felipe, e ele teve a grande amabilidade de me responder, pelo que muito agradeço. Evitei, claro, repetir as perguntas já contidas na FAQ. As respostas se encontram a seguir, confiram:
PX: Há quanto tempo você vêm trabalhando no livro? Como surgiu a idéia?
FP: Comecei a trabalhar no livro em janeiro de 2014, logo depois de organizar a votação do Top 70 RPGs do RPG Codex. Nós fizemos a votação e pedimos para a comunidade do fórum criar mini-resenhas para cada jogo na lista, explicando as qualidades de cada jogo. Funcionou muito bem e todos adoraram, e daí saiu a ideia de expandir a lista e as resenhas, criando um livro com esse conteúdo.
PX: Existem regras, padrões e guidelines que os resenhistas devem respeitar?
FP: Eu deixo bem livre a estrutura, minha única exigência é que alguém que nunca ouviu falar sobre o jogo em questão consiga ler a resenha e entender do que se trata. Algumas pessoas são objetivas e descrevem os sistemas em detalhes, outras se focam na experiência do jogo, e algumas até no valor histórico. Fica bem variado, e acho que temos conseguido manter um nível elevado com as resenhas.
PX: Qual foi seu primeiro contato com um CRPG? Em que plataforma?
FP: Comecei jogando no Amiga 500 do meu pai, que tinha sido contrabandeado pra dentro do país por que uma lei da época da ditadura proibia importar computadores. Mas só fui jogar RPGs mesmo já no MS-DOS, com Betrayal at Krondor e Darklands. Eu entendia muito pouco, tanto das regras quanto do inglês, mas adorava ver meu pai jogando.
PX: Quais seus CRPGs prediletos? Você tem algum estilo favorito?
FP: Essa pergunta sempre é difícil... Meu Top 5 é Fallout 2, Baldur's Gate 2, Arcanum, Dark Souls e Ultima V, mas gosto de muitos outros. Não tenho um estilo favorito, gosto de tudo, de dungeon-crawlers em primeira pessoa até mesmo esses FPS/RPGs modernos. O que realmente me chama a atenção é se o jogo tem um mundo consistente e que ofereça muita liberdade ao jogador. Nisso jogos como Dark Souls e Arcanum são inigualáveis.
PX: Há algum CRPG que você odeia em especial? Por quê?
FP: Odiar é uma palavra forte, mas Oblivion e Fallout 3 são minhas maiores decepções. Historicamente, são jogos de transição, que atualizaram e popularizaram as duas franquias, adaptando elas para jogadores de mais jovens, sobretudo de console. É só comparar a interface de Morrowind e Oblivion pra perceber isso, sobretudo os diálogos e inventário. Analisando friamente não são jogos ruins, mas perderam muito do que eu gostava nas séries, e isso foi extremamente decepcionante pra mim, sobretudo em Fallout 3.
PX: Qual sua "época de ouro" dos CRPGs?
FP: "Época de ouro" é algo complicado, por que sempre acaba ficando ligado à época quando a pessoa tinha uns 12-16 nos e estava descobrindo o mundo dos games com as próprias pernas. Por isso eu sei que tenho um viés enorme quando digo que amo o período de 1997 a 2001, com Fallout, System Shock 2, Baldur's Gate, Planescape:Torment, Jagged Alliance 2, Diablo II, Geneforge, Wizardry 8, Arcanum, etc...
Sendo um pouco mais profissional, te digo que 1992 foi provavelmente o melhor ano da história dos video-games, só com lançamentos revolucionários tipo Dune II, Wolfenstein 3D, Alone in the Dark, Ultima VII, Ultima Underworld, Super Mario Kart, Mortal Kombat, Darklands, Wizardry VII, Sonic 2, King's Quest VI, etc... Acho que essa sim foi uma época de ouro, com dezenas de títulos clássicos e vários novos gêneros e sub-gêneros sendo criados.
PX: Como tem sido a receptividade da comunidade em relação ao livro, principalmente em redutos hardcore e fortemente orientados a títulos old school, como o RPG Codex?
FP: Tem sido muito boa, e a segunda prévia do livro já está com quase 40 mil downloads. Talvez até um pouco boa demais. Gosto de criticismo, de gente mandando e-mails enormes com dezenas de críticas e sugestões. Recebo alguns desses, mas sempre é bom ter mais gente examinando seu trabalho. Acho que como todos me conheçam a anos, confiam mais e acabam sendo mais gentis... o que tem seus prós e contras.
PX: Há intenção de lançar o livro em outras línguas? Quais?
FP: Esse assunto é complicado... queria muito lançar o livro em português, até pensei em traduzir tudo eu mesmo, mas são mais de 400 páginas, demoraria vários meses e tenho outros projetos em vista. Outra ideia é fazer um crowd-funding pra isso, mas acho injusto pagar uns 10-15 mil reais para um tradutor (o custo de um trabalho de qualidade) quando é um trabalho colaborativo e mais ninguém que está trabalhando no livro por anos vai receber um centavo. Fora que mesmo com o livro traduzido, 99% dos jogos só existem em inglês, então para quem será útil isso? Por isso primeiro estou focando em terminar o livro, aí depois vejo isso com calma.
PX: As pessoas se surpreendem quando descobrem que é um brasileiro que está à frente de uma iniciativa deste tipo?
FP: Até que pouco. Também achei que fosse ser algo chocante, mas na real acho que o pessoal não tem muita noção de como é o cenário de games por aqui. Os brasileiros é que ficam indignados quando digo que o livro é focado em RPGs de computador... sempre chega um e-mail reclamando que não tem Chrono Trigger no livro.
PX: Há algum colaborador em especial que você gostaria de cooptar para o projeto?
FP: Tem vários... Ken Levine, Richard Garriott, Brian Fargo, Swen Vincke, Doug Church, Paul Neurath e até o John Romero (ele ama Adventure Construction Set). Consegui vários outros que foi uma honra ter, como Tim Cain, Chris Avellone e Scorpia, mas esses aí acima estavam ocupados com outros projetos e não puderam participar.
PX: Você chegou a trocar idéias com o Matt Barton ("Dungeons & Desktops") sobre o projeto?
FP: Sim, o Matt até foi simpático e falou sobre meu projeto no final de um de seus vídeos. Mas mesmo sendo gratuito o meu livro compete diretamente com o dele, então ele preferiu não participar.
PX: Como você conseguiu fazer contato com a Scorpia? Ela ficou feliz de ser lembrada depois de tantos anos?
FP: Meu contato com a Scorpia foi um tiro no escuro. Peguei uma Computer Gaming World muito velha, de 1998 ou algo assim (ela saiu da revista logo depois) e mandei um e-mail pro endereço que tinha lá. Dois dias depois ela me respondeu. Ficou muito feliz de ser lembrada, ainda mais aqui do Brasil, e disse que se divertiu muito escrevendo sobre Ultima IV e Beneath Apple Manor. É uma honra enorme ter ela no livro, eu cresci lendo os textos dela.
Ficam aqui os meus agradecimentos a todos os envolvidos no projeto, que provavelmente dedicam boa parte de seu tempo de descanso em benefício da comunidade. Os fãs de CRPGs e de sua história são seus eternos devedores.
Links de Interesse:
- The CRPG Book Project
- Artigos do Felipe Pepe no Gamasutra
- Twitter do Felipe Pepe
- RPG Codex Top 70 PC RPGs
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